Marcatti é considerado por muitos o rei dos quadrinhos underground no Brasil. Não só pelas temáticas escatológicas em suas histórias, m...

11:46:00 by marcelo engster

Marcatti é considerado por muitos o rei dos quadrinhos underground no Brasil. Não só pelas temáticas escatológicas em suas histórias, mas por toda sua filosofia de produção. Com uma herança, nos anos 80, comprou uma impressora offset e abriu a editora Pro-C. Desde lá escreve, desenha, edita, imprime e distribui suas HQs.
Com vocês, Marcatti:

Pra ler escutando


Como você começou a trabalhar com quadrinhos?
Como a maioria dos autores, me interessei ainda menino. Lia Asterix, Mortadelo & Salaminho, Cebolinha... Mas, aos 14 anos de idade, um amigo comprou e me mostrou a Zap Comix nº 0 e os Freak Brothers.
Aí, fudeu! Na mesma época (1975, 1976), comecei a acompanhar o Fradim, o Pasquim e percebi a importância que os quadrinhos tinham e passei a rabiscar HQs freneticamente. Naquele tempo, as produções independentes dependiam dos recursos de diretórios e centros acadêmicos atuantes em faculdades e em escolas do então chamado "ginásio". Fui me enfiando nesses grupos até que, em 1977, publiquei minha primeira HQ na revista "Papagaio" feita pelos alunos do Colégio Equipe (onde eu não estudava). Contando por essa revista, em agosto de 2017 comemoro 40 anos de produção.

Minhas HQs são podres e anárquicas, mas meu processo é operário e pragmático.

Como é seu processo criativo? Você tem uma rotina de criação? Tem metas? Como fazer pra chegar da ideia ao papel?
Minhas HQs são podres e anárquicas, mas meu processo é operário e pragmático. Tenho uma rotina de 14 a 16 horas de trabalho por dia. Nesse processo, desenvolvi metas "operárias" de produção e divido meu dia pelas tarefas de criar, editar, produzir, promover e vender. Eu lamento muito que o dia só tenha 24 horas...


Quais temas gosta de abordar?
Putaria! (rs) Meu olhar é sobre nós mesmos. Nossa mania de mergulhar em mentiras e ocultar nossos desejos e anseios. A espécie humana insiste em querer ser ao invés de apenas ser. Vivemos pelo que temos ao invés de viver por aquilo que somos. Adoro escarafunchar nossas contradições...

Quais suas principais referências? O que te inspira?
Nada me inspira. Mas tudo me alimenta. Quando ando pela cidade, gosto de observar o comportamento das pessoas e colocar nesse caldeirão a minha percepção sobre elas. Não vejo somente aquilo que imagino sobre elas mas, também, como o meu olhar pode contaminar minhas opiniões e meus delírios sobre tudo. As raízes de nossas "verdades" se formam a partir das sementes de nossas "mentiras".



Como é seu dia a dia de criador?
Em geral, acordo muito cedo, por volta das 6h30 da manhã. Faço as tarefas de atender os pedidos de minha loja virtual, responder e-mails etc. Só após o almoço que eu me foco em pensar no processo todo que envolve conteúdo e produção de quadrinhos. Dependendo da época, no restante do dia sou mais "editor" do que "autor". O doce fardo da produção independente se traduz em inúmeras tarefas que, em sua sistematicidade, acabam por alimentar e consolidar minha relação com os leitores.



Você faz alguma pesquisa para suas histórias?
Só faço pesquisas pontuais. Especificidades de época (em adaptações), roupas, tecnologias... Prefiro direcionar meu foco no conceito ao invés da contextualização. Ao longo dos séculos, evoluímos e mudamos em diversos sentidos. Mas, em essência, permanecemos os mesmos.

Abro o dicionário, pego uma palavra ao acaso (sem escolha) e limito duas horas para ter uma HQ pronta para desenvolver o roteiro. Tudo sob o imperativo de um relógio.

O que faz quando tem o famoso branco?
Sempre tive medo do bloqueio criativo. Esse receio me fez desenvolver um método - extremamente racional - de criar histórias. Há décadas que não "espero" por inspiração. Quando termino uma HQ, imediatamente me obrigo a criar outra. Hoje, eu domino com facilidade essa técnica de criar uma história a qualquer momento. Abro o dicionário, pego uma palavra ao acaso (sem escolha) e limito duas horas para ter uma HQ pronta para desenvolver o roteiro. Tudo sob o imperativo de um relógio. Quando estou pela rua e me vem uma "ideia extraordinária" para uma HQ, faço questão de esquecê-la. Não quero me tornar refém da inspiração.



Qual a importância das personagens para as histórias? Qual seu trabalho de desenvolvimento de personagens?
Gosto de acreditar que não existem "grandes histórias". Nenhum clássico da literatura, do cinema ou dos quadrinhos tem uma "grande história". Pois não é o fato que dá emoção. Mas é como sua origem, seu desdobramento e sua resolução, com relação a alguém ou "alguéns", que fazem o leitor abraçar uma história. As personagens são o espelho de nós. Nenhum acontecimento terá valor, importância ou irá sensibilizar se não mergulhar  personagens na origem desse acontecimento, no seu impacto e na sua consequência.

Fazer quadrinhos não é "arte", mas comunicação. Se eu exponho os meus e os seus anseios, as minhas e as suas frustrações e emoções, estabeleço uma relação imediata com você. Tornamo-nos amigos.

Como chegar até o público? Como estabelecer uma relação com o leitor?
A primeira parte da pergunta é a resposta da segunda. Você "chega" no público quando se relaciona com ele. Um autor não pode ser uma entidade à parte. Para mim, o leitor é a parte fundamental do trabalho. Eu escrevo e desenho aquilo que gostariam de ter escrito e desenhado. Fazer quadrinhos não é "arte", mas comunicação. Se eu exponho os meus e os seus anseios, as minhas e as suas frustrações e emoções, estabeleço uma relação imediata com você. Tornamo-nos amigos. E meus leitores são meus amigos.


Você decidiu seguir por uma linha independente e editar e lançar suas próprias HQs. Por que seguir este caminho? É possível viver de quadrinhos? Quais as dificuldades do mercado brasileiro?
Ser independente dói. Quisera eu apenas desenhar e escrever (apesar de ser apaixonado pelo processo de impressão). As dificuldades do mercado estão diretamente ligadas ao fator econômico e comercial. Tratar cultura como produto de consumo é a semente de qualquer tipo de crise. Faço quadrinhos como extensão de minha vontade de expressão. Não posso me permitir estar adequado a grades de programação editorial, fatores de economia e de mercado, conceitos empresariais e corporativos. Necessito escrever, desenhar e publicar. Se para isso for preciso me auto financiar, me auto editar e me auto imprimir, que o seja. O melhor em ser independente é que não existe nenhuma fronteira entre eu e meu leitor.

Jamais saberei se minha escolha foi a certa, mas disciplina, teimosia e disposição diante de qualquer dificuldade são a minha cenoura amarrada na testa. 

O que aconselharia para quem está começando ou quer trabalhar com quadrinhos?
Quem sou eu para dar conselhos?... Mas adoraria receber alguns (rs). Jamais saberei se minha escolha foi a certa, mas disciplina, teimosia e disposição diante de qualquer dificuldade são a minha cenoura amarrada na testa. Fazer HQs por dinheiro não é opção, é equívoco.

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