De jornalistas os quadrinhos estão cheios: Clark Kent, Peter Parker, Alan Scott, etc. Deve ser uma das profissões mais comuns das person...

10:14:00 by Manuela Joana Engster

De jornalistas os quadrinhos estão cheios: Clark Kent, Peter Parker, Alan Scott, etc. Deve ser uma das profissões mais comuns das personagens de HQ - talvez por ser uma forma fácil de explicar como os/as protagonistas conseguem informações que, às vezes, nem mesmo a polícia sabe. Porém, algo que muitos não sabem - ou não perceberam - é que os quadrinhos, além de apresentar jornalistas, é também usado como ferramenta para esse ramo: é o jornalismo em quadrinhos (ou comics journalism, em inglês). Não é novidade para quem cursa essa área da comunicação que o jornalismo moderno tem buscado se adaptar aos novos tempos para conseguir alcançar um público dinâmico e diferente de tudo que já se viu. Por exemplo, quando alguém imaginaria William Boner levantando  de sua cadeira e caminhando pelo estúdio? Ou melhor, quem acreditaria, alguns anos atrás, que haveria um apresentador de notícias barbudo, tatuado e usando camisetas com referências à cultura nerd? Assim também acontece com os quadrinhos, que passaram a ser vistos como uma forma diferente e interessante de transmitir informações.

Brought to Light, de Joyce Brabner (1988)

Na verdade, não é uma grande surpresa: alguns hqs, sem querer, transmitem em suas histórias cenas reais que poderiam facilmente ser transformadas em uma reportagem - tomemos Gen - Pés Descalços como exemplo: a descrição feita dos horrores no ataque à Hiroshima, os problemas enfrentados pela população, as justificativas do governo, o abandono aos doentes e falecidos: tudo poderia ser lido em uma reportagem feita por um jornalista que observasse o local, mas, pelo contrário, foi desenhado e transmitido através de um personagem fictício que esteve no local na hora da bomba e sobreviveu. Então, logo se percebeu como essa ferramenta poderia facilitar a transmissão de informações - sabe aquela famosa frase "entendeu ou quer que eu desenhe?"? Foi tipo isso.

O que é

Tá, mas afinal o que pode ser caracterizado como jornalismo em quadrinhos? Basicamente, é a mistura das essências dos dois: ter personagens, falas, relatar um evento ou uma situação real, sem exageros e ficção - nada que a fonte não disse pode ser transmitido; é o que é, assim mesmo, sem tirar nem por. Claro que, pelo fato de mostrar acontecimentos e pessoas reais, não é proibido que o jornalista coloque um pouco de sua opinião (saiba que é praticamente impossível ser isento de transmitir sua ideias), mas o profissional deve buscar o máximo de versões e 'verdades' possíveis, tentando, assim relatar com o máximo de verossimilhança. Nas palavras de Felipe Muanis, ilustrador e professor do Departamento de Cinema e do programa de pós-graduação em comunicação social da UFF (Universidade Federal Fluminense), do Rio de Janeiro, para o Saraiva Conteúdo,
O jornalismo em quadrinhos acontece quando um repórter vai até o local, investiga e publica a história, ou seja, o mecanismo é convencional.

Ilustração de Melton Prior sobre as guerras Anglo-Ashanti. Diary of Kofi Gyan / imagem: Mepri-Coll

História

Para chegar ao modelo oficial de jornalismo em quadrinhos, foi preciso passar por um processo que começou antes mesmo do surgimento do jornal impresso, através das charges, imagens humorísticas, mas basicamente satíricas que transmitiam a opinião de alguém sobre um fato, uma pessoa, etc. Em seguida, surgem, nos jornais, as tiras em sequência que, normalmente, são somente um adendo à publicação. Elas não eram jornalísticas, pois traziam histórias fictícias. As primeiras ocorrências oficiais datam do séc. XIX, onde, segundo o jornalista e pesquisador do assunto Augusto Paim, os repórteres, com a dificuldade da época para registrar os fatos, acabavam apelando para o desenho, realizando manualmente o processo que seria assumido pelas máquinas fotográficas. Um exemplo famoso dessa época é a de Melton Prior, correspondente de guerra para o The Illustrated London News entre 1870 e 1904. Ele foi responsável pela cobertura das guerras Anglo-Ashanti (interior de Gana, na África), do movimento político conhecido como Carlismo (Espanha), entre outros. Suas ilustrações tiveram um muito significado para o jornalismo e, atualmente, ele nomeia um instituto cujos estudos focam o jornalismo em quadrinhos - mas, mais especificadamente a reportage drawing, algo como desenhos-reportagem (acredito que se assemelham em muito às fotorreportagens, ou seja, imagens que falam muito sobre a cena em si; não necessitam de muita escrita).

Maus: a história de um sobrevivente, de Art Spiegelman

Os grandes nomes

Finalmente, o jornalismo em quadrinhos vai ser oficialmente reconhecido por causa de dois caras: Art Spiegelman e Joe Sacco. A obra Maus: a história de um sobrevivente, de Art, por exemplo, é aclamada por muitos como a primeira experiência do tipo (ela até recebeu um Pulitzer, normalmente cedido a trabalhos jornalísticos). Nela, Spiegelman narrava a luta de seu próprio pai, um judeu polonês, para sobreviver aos horrores do holocausto. Mas o termo Jornalismo em Quadrinhos só vai surgir mesmo com Joe Sacco em meados de 1990 com Palestina, onde, através de livros-reportagens, ilustrou os conflitos entre israelenses e palestinos. Segundo Jens Harder, um quadrinista alemão,
Joe Sacco é, desde o princípio até hoje, o 'super-herói' da reportagem em quadrinhos porque trabalha com muita seriedade e ambição e porque pega pontos centrais da vida social e política e põe sob uma lupa.
Footnotes in Palestine, de Joe Sacco
Alguns registros anteriores também podem ser mencionados: segundo o pesquisador brasileiro Aristides Dutra, "em 1988, a editora e roteirista de quadrinhos Joyce Brabner produziu um livro–reportagem em quadrinhos chamado Brought to Light. Como não havia ainda um nome para esse conceito, o livro foi apresentado como um graphic docudrama”. Antes dele, em 1986, o fotógrafo francês Didiere Lefrève, que tinha passado dois meses no Afeganistão acompanhando o Médico Sem Fronteiras, publicou fotos que viriam originar, mais tarde, a obra O fotógrafo.

O fotógrafo, de Didiere Lefrève


FIM DA PRIMEIRA PARTE

Créditos da primeira imagem: MauMau


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