Um ano após ajudar Marlin a reencontrar seu filho Nemo, Dory tem um flash de lembrança de sua família e parte em busca de respostas sobre seu passado. O que consegue se lembrar? Quem são e onde estão seus pais? Qual o lugar dela no oceano? E até como ela aprendeu a falar baleiês, são questão a serem respondidas nessa nova aventura.
Uma das primeiras coisas ao ver esse filme foi a de emergir algo que já estava pulsando na minha percepção faz um tempo, se não me falha a memória rsrs, a relação entre “A Viagem de Chihiro” (2001) e “Up - Altas Aventuras” (2009).
Cinema é feito de referências, experimentações e algumas fórmulas discutíveis. Desde que Chihiro ganhou o Oscar e se tornou uma grande referência, popularizando o alcance dos estúdios Ghibli pelo mundo, isso afetou sutilmente a forma como a Pixar vem trabalhando o conteúdo de suas animações. Como a fórmula Disney de fazer desenhos afeta estúdios como a Dreamworks e a Blue Sky. Claro! Isso é bem sutil e estamos falando de culturas com inúmeras distinções, quando comparamos ocidente e oriente. Cada lançamento do estúdio japonês é tão aguardado quanto as animações da casa das animações. Em Toy Story 3 (2010), temos uma homenagem singela do Totoro como um dos brinquedos da Bonnie. Há ali uma importante reverência, reconhecimento e respeito ao seu criador Hayao Miyazaki, que é tão importante para a animação quanto Wall Disney o foi. E talvez essa referência seja um indicativo claro das inspirações e da linha amadurecida que a Pixar vem adotando ao longo de seus filmes. E essa maturação nos desenhos, pressupõe que as crianças absorvem e interpretam o mundo com uma receptiva complexidade. E o é. As animações estão se tornando densas na mesma medida de quão belas podem ser. É muito bom que nossas crianças sejam levadas nesse oceano de experiências e reflexões. Lembro de apresentar “A Princesa Mononoke” (1997), para meu sobrinho de 9 anos e com muita curiosidade esperar um parecer dele sobre o desenho:
_E aí o que achou?
_Gostei... mas é estranho.
_Estranho como?
_Muito sombrio, mas muito bom.
E na mesma semana ele viu o desenho umas três vezes. Ainda tive que arrumar imagens de papel de parede para o celular dele. Aplicar o termo sombrio num filme como Mononoke foi fantástico, ainda mais com essa idade. Ali comecei a reparar em como as crianças estão recebendo esses novos desenhos, já que fui uma criança que nunca gostou da Disney (só fui me aproximar mesmo com o surgimento da Pixar) e nem de Monteiro Lobato. Notei que quando menor eu era também muito categórico no que gostava e que sempre existe aquele conteúdo que te trata como menos do que o que você pode o ser, não é meramente uma questão de época. Eu era apaixonado pelo período dark da animação, acho até que a Pixar está trazendo um pouco disso de volta, mas isso é assunto pra outra postagem. O importante agora é que é um presente viver num mundo onde esse tipo de obra é possível.
Na continuação do querido “Procurando Nemo” (2003), a trama traz à tona a personagem que talvez mais tenha brilhado no primeiro filme: Dory. Todo mundo queria ter a peixe tang azul, com perda de memória recente, como amiga. Mas será mesmo que a afeição que adquirimos pela personagem seria consistente fora da aventura em que ela vive? Conversando com uma das escritoras do Quadrinhólatra (Lygia Reny), sobre a experiência dela com o filme, a resposta dela me impressionou muito. Ela lembrou-se de sua bisavó com Alzheimer. E isso foi surpreendente. E também nos remeteu a uma animação feitas pelos hermanos argentinos, que comentaremos aqui um dia.
“Ao ver o filme me lembrei de quando minha bisa foi diagnosticada com Alzheimer, com o medo que tive quando vi uma pessoa próxima aos poucos se esquecer de mim. E de toda a família. Em um momento mais avançado da doença, a vi esquecendo, até mesmo, de quem ela foi um dia. No filme, Dory se esforça para lembrar. E a cada vez que alguma crítica acentuava isso, deixava ainda mais evidente, para mim, que se tratava da forma em que nós jovens, filhos e netos, por muitos momentos ignoramos que um membro mais velho de nossa família sofre.” Lygia Remy Alcantara
Comigo a animação trouxe lembranças das boas aulas de filosofia e filmes como “Memento” (2000), que me recuso a chamar de Amnésia porque não é isso que o personagem principal tem, e “O Ano Passado em Marienbad” (1961). Em ambos os filmes memória é a questão principal. Um luta para salvar a própria vida com alguns fragmentos de lembranças chave ou uma tentativa talvez frustrante de recordar um romance que aconteceu em Marienbad. Há muitos elementos dos dois filmes na animação da Pixar. A tentativa de com algumas referências montar uma retrato imediato da realidade, como no filmes dos irmão Nolan. Ou a construção de um mundo baseado em referências distantes, flashes de recordações prováveis e talvez não tão confiáveis, como parece ser no filme de Alan Resnais. Acho que alguém pode pensar no “Como Se Fosse a Primeira Vez” (2004), do Peter Segal, como uma referência também, mas creio que não se aplique tanto.
Mas em si é um filme muito profundo. Obscuro tal como as memórias da Dory. Há uma tentativa de, mesmo retratando a mente fragmentada da peixinha, não deixar que as lacunas de sua memória sejam hiatos na história do filme. Foi muito ousado, de uma certa forma, pautar o roteiro quase todo em cima de uma personagem tão inconsistente. Flashback, geralmente é algo considerado amador, coisa de roteirista principiante, mas aqui é tratado como uma fonte de recordações preciosas. E eles são muito bem-vindos. Pelo filme todo temos mudanças de cores, texturas e luz de acordo com o desenvolvimento mnemônico de Dory. E é um filme bem escuro para os padrões da Pixar, mas também é importante ter em mente que desde "Valente" (2012), a casa das animações vem cada vez mais experimentando texturas e atmosferas em suas animações. Vários personagens novos são convocados para não deixá-la sozinha. E porque sozinha ela se perde e se ela se perde, o filme também irá. Vale ressaltar que um dos momentos mais memoráveis de um desenho da Pixar, é o momento em que ela está só... com as conchas.
Nemo e Marlin estão no filme, mas muito mais coadjuvantes do que a Dory foi no filme anterior. Marlin é aquela “pessoa” que talvez a maioria de nós seja um pouco, mesmo que não admita: impaciente e acomodado. Ele nos mostra o que é estar ao lado de alguém cuja memória falha. O que é explicar seguidamente a mesma coisa. E estar num processo de exercício onde a mente se esforça para voltar ao mesmo ponto inúmeras vezes. Marlin perde a paciência alguma dessas inúmeras vezes. Nós entendemos ele. Mas entendemos a Dory também. E isso dói um pouco. Como um fardo que duas pessoas levam consciente ou inconscientemente. Para Nemo, que é uma criança bem sagaz, ela é alguém que se deve amar e cuidar. Ela é família. Afeto. Ele vai crescer ao lado dela e tê-la no seu convívio como algo natural. Acho que a solução mais plausível do filme é cercar alguém assim de pessoas que a ame. Quanto mais melhor. Ninguém é sobrecarregado nesse processo e por mais que haja alguma perda, seja de memória ou não, o que não pode acontecer é alguém ter que se lembrar do que é ser bem quista por alguém. A cena final do filme, em que os dois estão lado a lado, é aquele tipo de cena que você fica tentando entender uma profundidade maior que ela mesma.
Além do emaranhado de lembranças que dispõe nossa memória, confiança, amizade, o afeto pelo outro e família são os grandes pontos de discussão do filme. Tal como um anime que preza por temas como a união, o amor, a coragem e a amizade retratadas em suas obras. Qual a grande diferença entre um amigo e nossa família? O que os distingue? Dory é um peixe que para além da necessidade de se perguntar quem eu sou e qual meu lugar no mundo, traz a tona uma questão social que não pode ser respondida por nosso EU interior, pois depende do outro: eu existo com o outro, sendo assim, faço parte da vida de quem...
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