Por Ariel Engster      A revolução de Mao não ficou famosa pelo bom trato com os artistas, mas isso não impediu que a arte fosse...

14:52:00 by Unknown
Por Ariel Engster


     A revolução de Mao não ficou famosa pelo bom trato com os artistas, mas isso não impediu que a arte fosse utilizada em benefício dos objetivos dos comunistas. Os quadrinhos, por exemplo, não foram deixados de lado quando a missão era falar com sua população. É isso que retrata o livro Los comics de Mao, organizado por Gino Nebiolo, Jean Chesneaux e Umberto Eco. Publicado na Espanha em 1976, a obra apresenta algumas histórias representativas do uso do regime chinês das hq’s e análises de suas características. São seis hq’s e uma fotonovela, produzidas em Pequim, Xangai ou Hong Kong – que, à época, fazia parte do Reino Unido.



Para os maoístas, os quadrinhos eram uma forma fácil de doutrinar o povo e o meio para isso era mais as palavras do que as imagens. Havia um problema, porém: o analfabetismo na época atingia de 85% a 90% dos chineses. Os quadrinhos tornaram-se, assim, não só um meio de propaganda política, mas também uma via de alfabetização do povo, repetindo uma estratégia já utilizada com o Livro Vermelho de Mao. Isso é, possivelmente, a explicação para as altas tiragens – as histórias impressas no livro variam de pouco mais de 280 mil a 2 milhões de exemplares.


    Os revolucionários não começaram do zero, porém. Há registros de quadrinhos na China já no século XIV divulgando os ensinamentos de Confúcio. Nos anos 1920 circulavam por Xangai quadrinhos com histórias fantásticas ou obras populares clássicas ou do teatro. Na década seguinte, começam a aparecer as primeiras hq’s estrangeiras, como Flash Gordon, O Fantasma ou Topolino, nos idiomas originais ou traduzidos. Estes, porém, circulam somente entre os filhos da alta burguesia, que frequentam escolas ocidentais. Aos poucos, porém, vão aparecendo editoras especializadas em quadrinhos que imitam os importados.



Nebiolo conta, na introdução, que, em viagem de trem pela China, viu os quadrinhos serem distribuídos aos passageiros. As capas eram coloridas, mas o interior todo em preto e branco. Cada página trazia uma ilustração, o que resultava em 100 a 120 páginas. Assim que era lido, os passageiros silenciosamente trocavam de revistas. Os leitores, destaca Nebiolo, não eram jovens, mas adultos, que trocavam o sono depois do trabalho pelos quadrinhos. Inicialmente, porém, as hq’s eram voltadas para o público jovem, ficando os mais velhos com as fotonovelas. Estas refletiam o cinema da época, patriótico e comunista. Com o tempo, entretanto, os quadrinhos aumentaram seu público, chegando aos adultos, e se tornando mais sisudos, dominados por uma seriedade ideológica. Eram claramente político-pedagógicos, de uma enorme simplicidade e sem elementos fantásticos ou de divagação. Os preços variavam, porém não eram baratos, e às vezes uma mesma história era desenhada e impressa separadamente em diferentes províncias. A produção das histórias, aliás, geralmente seguia uma sequência: os romances tornavam-se teatro ou cinema e estes eram adaptados para os quadrinhos. Assim, onde os livros, o teatro e o cinema não chegava, chegavam as hq’s, que Nebiolo chama de “ponto final de uma operação programada para chegar mentalmente às massas”.



Para Nebiolo, essa é uma explicação para a simplicidade das narrativas, heróis estereotipados entre “bons” e “maus” e a falta de matizes nas caracterizações. Jean Chesneaux também vai propôr uma explicação para a simplicidade dos quadrinhos. Estes são, diz Chesneaux, produto não só da revolução chinesa como de toda a história daquele país. Carregam a influência da tradição confuciana misturada com uma dose de dogmatismo marxista e uma pitada da tensão política em que vivia a China, além da própria finalidade didática do texto. Eco também atribui às tradições iconográficas e narrativas chinesas o estilo dos quadrinhos. Eco analisa que, ainda que o texto tenha destaque nos quadrinhos chineses, a imagem tem a tarefa muito importante de trazer os elementos descritivos e a caracterização dos personagens.



Nos quadrinhos maoístas, cada imagem é uma cena – o que torna mais compreensível o formato de uma figura por página visto por Nebiolo. O principal sempre aparece no texto, sendo completado pelo desenho. Por vezes, aparecem balões de fala, complementando o diálogo do texto. Há uma certa igualdade entre personagens masculinos e femininos, mas, ainda que possam ser protagonistas das histórias, elas nunca ocupam os cargos mais altos, a não ser no esquadrão feminino. Muitas vezes, porém, são elas que solucionam as histórias. Os quadrinhos também servem para depreciar adversários, como quando os soldados do Vietnã do Sul são chamados de “soldados-fantoches” por trabalharem para os Estados Unidos. O que se sobressai de todas, porém, é um sentimento de heroísmo que não se restringe aos personagens principais. Sempre há uma força coletiva aparecendo como essencial para o desfecho da história. E o personagem principal sempre põe os interesses da revolução sobre os pessoais. O grande destaque é, sempre, a moral do regime comunista.



    Resta a curiosidade de saber como está o mercado de quadrinhos dessa China cada vez menos comunista e mais aberta ao ocidente. Se hoje já são as editoras ianques que chegam aos leitores de lá, ou se a produção ainda é nacional. Ou se, até, as revistas desapareceram ao perder sua utilidade para a revolução e ver-se frente a frente a atrações como o cinema e a internet que ganharam um espaço muito maior nos últimos anos. É uma China muito diferente da dos anos 1970 que se encontra hoje. Certamente os quadrinhos também o são.

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