Faz 34 anos desde o lançamento em salas comerciais do longa Amor Maldito, de Adélia Sampaio. Fora o último filme em circuito comercial ...

08:32:00 by marcelo engster

Faz 34 anos desde o lançamento em salas comerciais do longa Amor Maldito, de Adélia Sampaio. Fora o último filme em circuito comercial dirigido por uma diretora negra.  Em 2018 finalmente essa barreira é quebrada com a obra "O Caso do Homem Errado", da diretora Camila de Moraes. “Olha o tempo que levou para que outra mulher negra conseguisse chegar nesse patamar. O racismo é tão bem estruturado que ele age em todas as frentes, inviabiliza nossas ações de todas as formas. Então, essa é a importância de entrarmos em circuito comercial, de escancarar novamente essas portas, para que, ano após ano, mais companheiras consigam estar conosco nessa trajetória.” comenta a realizadora. Conversamos com a Camila sobre seus processos criativos e as dificuldades enfrentadas na realização e distribuição da obra:


Como foi a experiência de gravar "O Caso do Homem Errado"? O que te inspirou a realizar o documentário?
Esse foi o meu primeiro longa-metragem, tivemos muitas dificuldades e com isso muito aprendizado. A experiência foi incrível. Ensinamentos que levarei para vida e com certeza foi a atividade mais importante que já realizei até os dias atuais. Esse era um projeto antigo e que pessoas próxima sabiam do interesse de gravar esse filme, que no inicio a proposta era para ser um curta-metragem. Tentamos alguns editais e nunca fomos selecionadas. No final do ano de 2015, a produtora executiva do filme, Mariani Ferreira, me fez a proposta de lançarmos uma campanha virtual de financiamento coletivo. Começamos essa campanha no inicio do ano de 2016, porém não atingimos a meta e aí concretizamos a parceria com a produtora de cinema de Porto Alegre, Praça de Filmes, no qual tivemos a estrutura técnica para gravar. Trabalhamos com uma equipe enxuta e que acreditava muito no projeto, acredito que isso é o resultado que temos hoje. Todos estávamos alinhados e determinados para contar uma história. No período de montagem/edição é que percebemos que, pela quantidade de material que tínhamos, não seria possível fazer um curta-metragem e assim o filme se transformou em um longa-metragem. Infelizmente, o Julio Cesar não foi o primeiro jovem a ser morto pela polícia e não será o último, por conta dessa revolta e de saber todos os dias que nossos colegas de escolas, amigos próximos, que meu irmão ou sobrinho, podem serem mortos por conta da cor da pele, quisemos utilizar a ferramenta do audiovisual para expressar essa revolta por meio da arte, porém para também propor um diálogo sobre essa questão que é urgente, pois o racismo mata. Isso é muito cruel, muito doloroso e precisamos mudar essa realidade. 

A nossa estratégia de entrar em circuito comercial, por mais difícil que tem sido essa tarefa, é para mostrar para a sociedade brasileira que existe sim produções negras de qualidade, que pessoas negras estão contando suas histórias a partir do seu ponto de vista, que deixamos de ser objetos para sermos protagonistas de nossas histórias.

Qual a importância do lançamento desse longa em salas de cinema?
Quem faz filme, "não faz filme para ficar na gaveta”. Um filme é para ser assisto por milhares de pessoas e causar algum tipo de sentimento, reflexão. A nossa estratégia de entrar em circuito comercial, por mais difícil que tem sido essa tarefa, é para mostrar para a sociedade brasileira que existe sim produções negras de qualidade, que pessoas negras estão contando suas histórias a partir do seu ponto de vista, que deixamos de ser objetos para sermos protagonistas de nossas histórias. Com esse nosso documentário somos a segunda mulher negra, em 34 anos, a conseguir entrar em circuito comercial. Essa informação é absurda! Olha o tempo que levou para que outra mulher negra conseguisse chegar nesse patamar. O racismo é tão bem estruturado que ele age em todas as frentes, inviabiliza nossas ações de todas as formas. Então, essa é a importância de entrarmos em circuito comercial, de escancarar novamente essas portas, para que, ano após ano, mais companheiras consigam estar conosco nessa trajetória. Gostamos muito do lema da Marcha das Mulheres: “Companheira me ajude que eu não posso andar só”. Viemos de um ensinamento de vida, de ancestralidade, que o sozinho você não irá longe, que no coletivo chegará mais longe e é assim que trabalhamos, no coletivo, pois queremos o nosso povo negro também ocupe todos os espaços, pois precisamos ter olhares mais diversos sobre as realidades brasileiras e isso só será possível quando nós começarmos a contar as nossas histórias. 

Foto de Carlos Moura
 Como você começou a trabalhar com cinema?
Eu sou de uma família de militantes do movimento negro e artista. Minha mãe é atriz, meu pai é jornalista, escritor e roteirista. Fui criada nesse meio. Tinha um tio que era cineclubista e sempre nos apresentava filmes em VHS de diversas regiões. Desde criança sempre ia ao Festival de Cinema de Gramado e amava aquela realidade do cinema. Na faculdade que produzimos o documentário “Mãe de Gay” que ganhou dois Galgos de Ouro, de melhor filme e júri popular, no Festival Universitário de Gramado. A partir dali comecei a produzir alguns vídeos institucionais e outros projetos individuais, ou ainda participar de produções de outras pessoas, atuar mais na área de produção mesmo. No ano de 2016 fiz a direção e o roteiro do curta-metragem de documentário “A Escrita do Seu Corpo” que no ano de 2017 circulou por alguns festivais no Brasil e depois disso fomos para o longa-metragem “O Caso do Homem Errado”. 

Como é seu processo criativo? Você tem uma rotina de criação? Tem metas? Como fazer pra chegar da ideia ao roteiro?
Os projetos pessoais são sempre relacionados com a questão racial e os mais diversos possíveis, pois podemos falar de qualquer tema, porém necessitamos ter essa oportunidade de abordar as nossas questões sem estereótipos e com personagens representados de forma digna. Não tenho uma rotina de criação, mas trabalho com prazos para poder dar conta. Crio os prazos e preciso concluir dentro do limite, normalmente quando está no fim do prazo, me tranco com o computador para poder dar conta das demandas. É uma loucura, fico mau humorada, fico com dor de cabeça, durmo pouco, mas a criação flui na pressão. (risos) Para chegar na ideia de um roteiro, olho ao meu redor, as pessoas que estão próximas, as situações, elas me dão inspirações para criar em cima e contar a história do nosso ponto de vista.

Foto de Irene Santos
 
Quais temas gosta de abordar?
Questão racial. Agora estamos começando a trabalhar com uma ficção que trata sobre amizade e amor, e com certeza aborda questão racial negra. Essa é minha linha, porque dela pode seguir por qualquer caminho, além de ser extremamente necessário sempre abordar essa questão. Então, como tenho conhecimento de causa, por levar na pele essa pigmentação negra que tanto amo, é a partir dela que sempre pretendo falar em meus projetos pessoais. 

Quais suas principais referências? O que te inspira?

A minha família de militantes negros. Vera Lopes, Paulo Ricardo de Moraes, Horácio Lopes, Quênia Lopes. Dentro do cinema, o cineclubista Luiz Orlando. As meninas negras que estão fazendo muitas coisas belas e criativas com muito ensinamento, entre elas Mariani Ferreira, Renata Santos, Julia Mores, Hegli Lotério. Essa pessoas que estão próximas, que não são muitas vezes referenciadas e que nos ensinam tanto. Elas me inspiram e merecem todo o reconhecimento em vida. 

A nossa produção é independente. É um documentário. É um longa-metragem. Aborda questão racial. Mais ainda fala de extermínio da juventude negra. Esse conjunto da obra necessita de muito convencimento das salas de cinema para ficarem em cartaz, pelo menos por duas semanas, com o nosso filme.

E como sair do roteiro para as telas?
Nós buscamos sempre parcerias. Há uma etapa aí que precisa ser cumprida antes de chegar nas telas do cinema. Depois da criação do roteiro, do registro na Biblioteca Nacional, é necessário estrutura técnica para gravar aquele projeto. Fazer parceria com produtoras de cinemas, conseguir patrocínios tanto para gravação como para montagem e edição. Após o filme finalizado é preciso fazer o registro todo do filme na Ancine e pagar todas as taxas. Depois disso seguir em diálogo com as salas de cinema para apresentar/vender o seu filme, garantir que terá público, negociar taxa de exibição que será paga para a  sala de cinema, negociar horários acessível para que haja público. No nosso caso é a primeira vez que estamos fazendo isso, e tem sido muito difícil e cansativo, além de nos gerar uma despesa muito alta, pois também é preciso encaminhar o filme no formato correto de exibição, outro material caro de ser produzido. A nossa produção é independente. É um documentário. É um longa-metragem. Aborda questão racial. Mais ainda fala de extermínio da juventude negra. Esse conjunto da obra necessita de muito convencimento das salas de cinema para ficarem em cartaz, pelo menos por duas semanas, com o nosso filme. Depois isso, ainda temos que trabalhar com o público, causar interesse nele pela obra para fazer com ele saia de sua casa para ir até ao cinema assistir ao filme. Então, como é sair do roteiro para as telas, é muito cansativo, muito trabalho árduo, muita perseverança e saber que temos uma obra filmica de qualidade técnica e que aborda um tema extremamente necessário para ser debatido com toda a sociedade, sejam elas pessoas negras ou brancas, pois buscamos medidas concretas para eliminar o racismo que nos mata todos os dias.

Foto de Irene Santos
Como faz a escolha de sua equipe?
Procuramos profissionais negros e mulheres. Na medida do possível a equipe sempre é formada assim. 

Olhares, na sua maioria, de homens brancos para tratar de diversos temas, sem que haja uma diversidade. Isso é cruel, pois essas obras, com um olhar só, irão chegar em diversos telespectadores que terão a oportunidade de verificar só um lado, só uma perspectiva da história. 

Quais as dificuldades do mercado brasileiro?
Pesquisas mostram que a área do cinema brasileira é dominada por homens brancos, depois vem as mulheres brancas, os homens negros e após as mulheres negras, bem como a pirâmide social, no qual, nós mulheres negras, somos a base.  Esses dados dificultam a nossa realidade de produção, poucos incentivos para nossos projetos relacionados à questão racial ou feminina. Produções grandes e com recursos financeiros com poucos profissionais negros ou femininos trabalhando nelas. Olhares, na sua maioria, de homens brancos para tratar de diversos temas, sem que haja uma diversidade. Isso é cruel, pois essas obras, com um olhar só, irão chegar em diversos telespectadores que terão a oportunidade de verificar só um lado, só uma perspectiva da história. Então, ainda há muita dificuldade em atuar nesse mercado brasileiro do audiovisual nos dias de hoje.

Foto de Irene Santos
O que te motiva a continuar fazendo cinema?
Acredito no poder da arte, na transformação por meio dela. O cinema tem sido uma ferramenta interessante no qual tenho conseguido chegar em diversas pessoas levando uma mensagem de reflexão, propondo mudanças. O cinema, a arte em geral, tem o poder de atingir o coração das pessoas, isso é muito gratificante, essa é a motivação. 

É preciso saber que o sucesso é a trajetória, os ensinamentos que serão adquiridos e multiplicados, por isso é importante nunca desistir, ter perseverança, acreditar na sua ideia e levar até o fim para poder concretizar, sempre no coletivo, pois sozinha não chegará longe.

O que aconselharia para as mulheres que estão começando ou querem trabalhar com cinema?
Para não desistirem nunca de seus sonhos. O caminho ainda é difícil, muitas dificuldades terão durante a trajetória, mas o prazer de passar por esse processo, de cruzar esses trajetos serão os melhores aprendizados que terão na vida. Aquele ensinamento no qual será uma multiplicadora nata, pois quando aprendemos o que mais queremos é passar adiante esse conhecimento e isso é feito de forma natural. Então, a questão aqui não é o sucesso de chegar no topo, pois a queda de lá é muito alta e dura. É preciso saber que o sucesso é a trajetória, os ensinamentos que serão adquiridos e multiplicados, por isso é importante nunca desistir, ter perseverança, acreditar na sua ideia e levar até o fim para poder concretizar, sempre no coletivo, pois sozinha não chegará longe.

Confira o trailer do longa "O Caso do Homem Errado"




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