Os últimos meses tem sido especiais para Marcel Ibaldo. Primeiro foi o prêmio internacional no “Silent Manga Audition”, o maior concurso do gênero no mundo com "The Choice". Agora veio o HQMix, com a melhor publicação independente edição única, para a revista “The Hype”. É o merecido reconhecimento para quem começou cedo a desenhar e escrever, tirou os projetos da gaveta e publicou e editou fanzines, sites e revistas independentes.
Desenhista e roteirista, Marcel nos conta sobre seus processos criativos, em especial as premiadas publicações e o novo projeto com sua filha de 10 anos.
Como você começou a trabalhar com quadrinhos?
Os primeiros trabalhos foram na forma de fanzine. Aquelas sensacionais edições xerocadas produzidas na época em que eu nem cogitava integrar um mercado do quadrinho nacional, mas que serviram de cartão de visita pra outras oportunidades, tais quais a de publicar na revista Quadrante X, em jornais e participar de exposições de quadrinhos.
A partir disso foi possível desenvolver o trabalho e estar apto pra quando novas formas de publicação foram surgindo.
O último ano foi especial em prêmios e reconhecimento, em especial o "Silent Manga Audition", com a HQ "The Choice", e o "HQMix", com a revista "The Hype". Qual a importância desses prêmios?
Com certeza está sendo uma época incrível nesse aspecto.
Em grande parte, até por eu ter sido autodidata nas HQs e ter quebrado a cara me arriscando sem nem saber o que era produzir quadrinhos, esses resultados em premiações servem de afirmação de que realmente o trabalho está em um patamar considerável.
Nada vai me convencer um dia que já está bom e que o aprendizado terminou.
Mas a perspectiva de profissionais renomados da área é um excelente termômetro e reafirma que esse aprendizado está me conduzindo por um bom rumo.
Como foi o processo de construção das hqs "The Choice" e "The Hype"?
Ambas as HQs foram produzidas em parceria com autores que moram em cidades distantes de onde eu moro, além de que em cada parceria minha função foi diferente, então as soluções pra que a produção fosse efetiva exigiram adaptação pra garantir prazos e qualidade.
Na The Choice eu trabalhei com o Elton Keller, e fiquei responsável por roteiro e desenho, enquanto ele trouxe o argumento e realizou a arte-final. Então era necessário calcular o prazo tendo em vista que o desenho era feito em uma cidade enviado pra outra digitalmente pra depois voltar digitalizado pra edição, e se qualquer problema surgisse por vezes levava a perder dias preciosos por questões simples como horários de trabalho de cada um de nós.
Já na The Hype, devido ao fato de a minha parceria com o Max já ser de várias HQs em sequência foi mais fácil porque a gente vinha desenvolvendo uma forma de trabalho e corrigindo problemas que apareciam. Acabou sendo a nossa HQ de processo de criação mais orgânico e eficaz e os feedbacks positivos ressaltaram o quanto o método funcionou.
Mas em ambas, apesar de à distância, o diálogo via internet fluiu muito bem até por ambos os autores serem meus amigos de longa data e também por terem influências similares às minhas, então por vezes a gente se entendia mesmo quando rolava alguma falha na comunicação.
Pelo fato de eu roteirizar e desenhar, mesmo quando não sou o responsável pela arte da HQ, desenho tanto quanto escrevo e já traduzo da maneira mais visual possível as ideias que servem de base pro desenhista, ainda que deixando total liberdade pra que alterações sejam feitas.
Como é seu processo criativo? Você tem uma rotina de criação? Tem metas? Como fazer pra chegar da ideia ao papel?
Quando defino em qual projeto vou trabalhar estabeleço um cronograma considerando variáveis que possam surgir e começo a rabiscar ideias.
Em geral quanto mais desencanado, melhor é pra surgirem soluções pro roteiro, então procuro desenhar qualquer ideia que surge e deixar à minha volta criando um ambiente propício ao meu envolvimento com o universo que estou desenvolvendo. Alio a isso música que considere compatível com o clima da história e tento o quanto antes entender as motivações dos personagens facilitando meu envolvimento pessoal com o enredo.
Pelo fato de eu roteirizar e desenhar, mesmo quando não sou o responsável pela arte da HQ, desenho tanto quanto escrevo e já traduzo da maneira mais visual possível as ideias que servem de base pro desenhista, ainda que deixando total liberdade pra que alterações sejam feitas.
Quanto a desenho, arte-final e cores, depende muito da abordagem pretendida e costuma requerer adaptação diferenciada em cada HQ.
eu diria que considero um desafio viciante encontrar o extraordinário nas situações mais ordinárias.
Quais temas gosta de abordar?
Não que eu tenha alguma barreira quanto a algum tema ou gênero de história, mas de um tempo pra cá tenho buscado incluir cada vez mais dramas humanos nas histórias. Então eu diria que curto mais situações cotidianas com personagens comuns, e tento sempre vincular isso de alguma forma às histórias que crio.
Exemplos que nem o da "Erro de Cálculo", publicada na Imaginários em Quadrinhos da Editora Draco, acredito que ilustram bem isso, principalmente por se tratar de um suspense com aspectos sombrios e influência bem sutil do cinema gore que eu gosto, mas sem por isso impedir que um drama familiar e questões sobre relacionamentos estejam em destaque na trama.
Resumindo, eu diria que considero um desafio viciante encontrar o extraordinário nas situações mais ordinárias.
Quais suas principais referências? O que te inspira?
Cinema, Quadrinhos e Música. Sem ordem específica e variando de projeto pra projeto. Além disso, eventualidades do dia a dia são um combustível muito valioso pra não ficar preso a estéticas ou padrões presentes no que eu consumo em se tratando de obras cinematográficas ou literárias. Reiterando a resposta anterior, zebras do cotidiano são algumas das minhas maiores inspirações.
Você faz alguma pesquisa para suas histórias?
Sempre. Mesmo em uma temática a qual eu já conheça bem, o processo de pesquisa pode expandir as possibilidades infinitamente.
A minha mente trabalha bem melhor nesses momentos de "aparente folga" do que forçando pra encontrar soluções na pressão.
O que faz quando tem o famoso branco?
Nada. Hahaha! Só mantenho os elementos da história e características dos personagens presentes à minha volta na forma de anotações ou sketchs e paro por uns minutos ou horas. A minha mente trabalha bem melhor nesses momentos de "aparente folga" do que forçando pra encontrar soluções na pressão.
Então eu costumo enfocar nos defeitos que todo mundo tem e a partir disso criar pessoas com personalidades em que as imperfeições não impeçam o cara de ser alguém capaz de atos de nobreza ou heroísmo, ainda que essa pessoa não seja o estereótipo da nobreza ou heroísmo.
Qual a importância das personagens para as histórias? Qual seu trabalho de desenvolvimento de personagens?
Da forma como encaro o desenvolvimento do roteiro, e até pelo que eu curto mais ler e criar, bons personagens são essenciais e acabam sendo uma parte bem difícil no processo de criação.
O maior desafio acaba sendo não se deixar levar pelo que Hollywood e muito dos quadrinhos mainstream nos convenceram ser a melhor representação de uma pessoa real. Então eu costumo enfocar nos defeitos que todo mundo tem e a partir disso criar pessoas com personalidades em que as imperfeições não impeçam o cara de ser alguém capaz de atos de nobreza ou heroísmo, ainda que essa pessoa não seja o estereótipo da nobreza ou heroísmo.
Pra mim é mais interessante acompanhar os personagens encontrando força pra sobrepujar as limitações quando são retratados em um mundo espelhando a nossa realidade na qual tantas vezes os atos movidos por empatia em relação à dor alheia são considerados idiotice.
Qual a importância do quadro em uma história em quadrinhos?
Depende muito.
Acho que varia de acordo com o artista, afinal existem histórias sensacionais empregando quadros e layouts totalmente convencionais, enquanto o mesmo ocorre em histórias sem nenhum requadro.
Acredito que a importância está muito mais em se o autor sente que aquela determinada HQ precisa ou não deles, e da forma ideal de empregar esse recurso.
Sem regras.
Quais são os cuidados na hora de diagramar uma página? Existe diferença entre o que vai em uma página ímpar e uma par?
Isso também depende muito, tendo em vista que há exemplos muito bons em que os ganchos de fim de página, e a disposição de informações novas está milimetricamente posicionada pra gerar uma determinada fluência de leitura, um dinamismo, e um envolvimento que não ocorre se essa etapa da produção for pensada de maneira diferente.
Mas é a mesma situação da pergunta anterior. Já li material excelente em que o autor parecia não se importar nem um pouco em relação a isso, e obras incríveis nas quais era imprescindível.
Poderia responder pelo que eu curto mais na produção, mas nunca em se tratando de um certo ou errado nesse aspecto.
Como chegar até o público? Como estabelecer uma relação com o leitor?
Internet e ir em eventos .
Afinal, queira ou não as redes sociais tornaram-se nas mãos de inúmeros autores verdadeiras plataformas de publicação de seus trabalhos na maioria das vezes muito mais eficazes que um site, blog ou publicação impressa no objetivo de chegar a um público amplo. Saber explorar essas ferramentas e, no caso de quem publica impresso ou em sites específicos, saber aliar a publicação nessas tantas plataformas é a grande questão, além da qualidade do material produzido, óbvio.
Como é a relação entre o roteirista e o desenhista?
Conforme eu mencionei, nas parcerias da The Choice e na The Hype eu estava trabalhando com amigos, o que facilita demais.
Eu costumo trabalhar com amigos meus, e quando não é assim geralmente acabam se tornando amigos durante o projeto, e isso favorece muito, até porque trabalhar à distância tem muitas dificuldades envolvidas.
Você consegue viver de quadrinhos?
Não. Na verdade não é algo que eu tenha tentado ainda. Eu simplesmente continuei produzindo HQs, e a remuneração surge mas eu nunca enfoquei de tal forma que deixasse de lado algum emprego formal pra investir o tempo todo em produzir quadrinhos.
Mas com certeza seria muito legal e esses resultados recentes me fazem repensar as possibilidades em relação a isso.
o que eu considero um bom editor, que ajuda a expandir as ideias e o universo sendo desenvolvido, apresentando um outro olhar apurado e crítico a respeito da obra, e indicando formas de enxergar além do conceito inicial, e ainda assim respeitando a identidade do trabalho do autor.
Qual o papel de um editor de quadrinhos em uma obra?
Falando da minha experiência pessoal trabalhando com editores conheci extremos.
Tanto o que eu considero um bom editor, que ajuda a expandir as ideias e o universo sendo desenvolvido, apresentando um outro olhar apurado e crítico a respeito da obra, e indicando formas de enxergar além do conceito inicial, e ainda assim respeitando a identidade do trabalho do autor.
Mas também existe o oposto, que é o editor que nem lê o material e até por isso não acrescenta nada ao processo por conseqüentemente possuir uma visão rasa da obra.
Então dentre os editores com os quais já trabalhei, diria que o papel seria mais voltado ao primeiro exemplo, que é trabalhar junto com o autor pra levar a história a alcançar o máximo do potencial a partir do conceito sendo desenvolvido.
O que te motiva a continuar fazendo quadrinhos?
Não consigo me imaginar não fazendo quadrinhos, cara.
Eu poderia dizer que são as infinitas possibilidades da linguagem das HQs, que eu curto contar histórias, ou qualquer outra coisa nessa linha, e seria uma parcela da verdade.
Porém, a verdade toda é que eu amo produzir quadrinhos e isso desde antes de eu conhecer os recursos narrativos ilimitados que a nona arte permite.
O Marcel de 11 anos não fazia ideia de que teria qualquer chance em premiações, ou se alguém ia ler aquelas primeiras HQs rabiscadas, mas ainda que tenha levado mais quase uma década pra publicar o primeiro trabalho, isso não diminuiu em nada o quão apaixonante é criar essas histórias e vê-las indo do insight inicial até ganharem forma e se tornarem material concluído.
Um novo universo que surge do lampejo de uma ideia.
Atualmente você trabalha em uma série de tirinhas com roteiros teus e desenhos de sua filha de dez anos. Como é trabalhar com as novas gerações? O que aconselharia para quem está começando ou quer trabalhar com quadrinhos?
Anteriormente, quando ministrei aulas de HQs pra crianças eu sempre fiz questão de viabilizar alguma forma de publicação pros meus alunos (seja em fanzines ou digitalmente) e isso é parte do quão gratificante é trabalhar com essa gurizada que nem pensa em mercado de HQs no Brasil, ou no quão concorrido pode ser. É inspirador.
No caso da Tê Rex, série de tiras que roteirizo e que minha filha Marcelli desenha, e que foi lançada em forma de marca-páginas pela Gibiteria Diagonal e agora digitalmente, isso é elevado a outro nível. Tanto pelo fato de ser uma parceria com a minha filha e mais cedo do que eu ela já ter iniciado essa caminhada e já ter trabalho lançado, mas também por eu tratar nos roteiros de elementos referentes à realidade dela, envolvendo sonhos, dificuldades comuns da idade, preconceito e bullying, entre outras coisas, até por ela própria já ter me dito que a abordagem presente nas tiras inspira ela a lidar com problemas cotidianos, e espero que possa de alguma forma ter esse efeito em outras pessoas.
Acho que pra todo mundo que almeja produzir quadrinhos o conselho é o mesmo: leia e assista muito e aprenda com tudo à volta, e claro, desenhe, escreva e encontre seu espaço nas várias plataformas de publicação que existem hoje. Um bom trabalho bem divulgado vai eventualmente encontrar seu público.
Você encontra mais sobre o Marcel em seu blog pessoal e pode adquirir seus trabalhos aqui.
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