Quando moleque, vivia em uma pequena cidade do interior do RS, quase fronteira com a Argentina. Conseguir qualquer gibi era uma avent...

16:16:00 by marcelo engster


Quando moleque, vivia em uma pequena cidade do interior do RS, quase fronteira com a Argentina. Conseguir qualquer gibi era uma aventura. Quadrinhos nacionais então, praticamente impossível. Foi aí que descobri os fanzines, principalmente com os catálogos editados pelo Edgar Guimarães. Comecei a trocar correspondências com fanzineiros, receber revistas em casa e desvendar artistas nacionais. Entre eles, um me chamava atenção pela arte e texto poéticos e filosóficos, o Ciberpajé Edgar Franco. Agora, quase vinte anos depois, converso com o artista sobre seus processos criativos.

HQ Duetos Essenciais

Como você começou a trabalhar com quadrinhos?

Tudo que nunca fiz foi trabalhar com quadrinhos. A palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento de tortura medieval muito cruel, e é verdade, no mundo contemporâneo trabalho é considerado algo desagradável que você tem que realizar para ganhar seu sustento. Toda a minha vida tem sido uma história de aversão ao trabalho, nunca trabalhei e espero jamais trabalhar! Fiz dos quadrinhos uma das minhas formas expressivas prediletas pelo amor genuíno que tenho por sua linguagem, amor que começou na tenra infância quando meu pai comprava gibis para mim todos os finais de semana, com os quais inclusive aprendi a ler. Logo veio o desejo de criar quadrinhos e ainda com 12 anos de idade publiquei minha primeira HQ em um fanzine e continuei a produção incessante que hoje ultrapassa as 3 mil páginas publicadas, somando-se fanzines, revistas e álbuns em quadrinhos. Também decidi levar os quadrinhos para o meu universo de pesquisa e fiz mestrado em multimeios Unicamp, onde realizei um estudo pioneiro no mundo sobre as HQs na Internet categorizando o que batizei de HQtrônicas; depois no doutorado em artes na USP criei um universo ficcional transmídia que entre outras criações gerou álbuns em quadrinhos, revistas e fanzines. Hoje, além de artista transmídia, sou professor no Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da UFG – Universidade Federal de Goiás, onde oriento mestrados e doutorados sobre o tema, e também criei a disciplina de graduação “Histórias em Quadrinhos de Autor”, que ministro na Faculdade de Artes Visuais da UFG. Por sorte faço o que amo e não preciso trabalhar!

Sou um adicto da criação, a todo momento tenho ideias visuais ou argumentos que tornam-se HQs, ilustrações, aforismos, músicas, performances com minha banda Posthuman Tantra, a experiência diária e a capacidade de ainda maravilhar-me com a vida torna cada momento inspiração para criar! Vida é criação e o ato criativo uma forma de cura rumo à transcendência!

Como é seu processo criativo? Você tem uma rotina de criação? Como fazer pra chegar da ideia ao papel?

Meus processos criativos são múltiplos e envolvem inclusive muito experimentalismo de linguagem.  Uma das pesquisas extensas para a qual tenho me dedicado, há cerca de 10 anos, é sobre os processos criativos experimentais de histórias em quadrinhos, considerando essa linguagem como uma genuína forma de arte e portanto com possibilidades infinitas de exploração e rompimento de seus limites. Essa pesquisa de caráter prático-teórico, parte de experimentos criativos em narrativas multifacetadas e transmidiáticas e tem resultado também em escritos de artista, artigos de opinião, entrevistas relatando meus processos criativos para sites, blogs, redes de TV, podcasts; artigos científicos em periódicos acadêmicos e anais de eventos nacionais e internacionais, capítulos de livros e até em um livro publicado: “Processos criativos de Quadrinhos Poético-filosóficos: a revista Artlectos e Pós-humanos”, escrito em parceria com a pesquisadora de minha obra e doutoranda Danielle Barros e publicado pela editora Marca de Fantasia.  Também têm sido escritos vários artigos científicos de pesquisadores de áreas distintas como artes, educação, letras, sociologia, filosofia, história e saúde, analisando minha obra e também dois livros, a maior parte desse rico material serve de referência para a pesquisa – retroalimentando-a. Dentre essa pesquisa experimental sobre processos criativos de quadrinhos destaco a minha revista Artlectos & Pós-humanos, um título de quadrinhos poético-filosóficos publicado pela Marca de Fantasia, editora que é um projeto de extensão ligado ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPB. O título, com 11 edições lançadas, é publicado já há doze anos, totalizando mais de 300 páginas de quadrinhos. Nesse período recebeu a premiação nacional Troféu Bigorna, em 2009, como melhor revista brasileira de aventura e ficção científica e foi motivo para dois livros acadêmicos publicados, sendo eles “Os Quadrinhos Poético-filosóficos de Edgar Franco” (2013), do Dr. em educação Elydio dos Santos Neto; e “Edgar Franco e suas criaturas no Banquete de Platão”(2013) da Dra. em comunicação Nadja Carvalho. A revista publica os meus quadrinhos experimentais no contexto de meu universo ficcional transmídia da “Aurora Pós-humana”. Só para ilustrar, destaco aqui alguns dos métodos experimentais de criação de quadrinhos desenvolvidos por mim durante esses anos, muitos deles lançando mão de ENOC – estados não ordinários de consciência como fonte de inspiração: 1.Método do Banco de Imagens; 2. Método da Parceria com Robô ; 3. Método da Expansão da Consciência; 4. Método do HQforismo; 5. Método da Respiração Holotrópica (ENOC); 6. Método da Psilocibina (ingestão de cogumelos - ENOC); 7. Método da Ayahuasca (ENOC); Método da Magia de Sigilos (ENOC). Aos que quiserem saber mais sobre esses métodos sugiro adquirirem meus quadrinhos e livros no site da Editora Marca de Fantasia (www.marcadefantasia.com) Obviamente também crio HQs com métodos tradicionais, como o álbum BioCyberDrama Saga, parceria com Mozart Couto, que surgiu a partir de uma extensa pesquisa de 15 anos sobre os avanços tecnológicos e o conceito de pós-humano. Sou um adicto da criação, a todo momento tenho ideias visuais ou argumentos que tornam-se HQs, ilustrações, aforismos, músicas, performances com minha banda Posthuman Tantra, a experiência diária e a capacidade de ainda maravilhar-me com a vida torna cada momento inspiração para criar! Vida é criação e o ato criativo uma forma de cura rumo à transcendência!

BioCyberDrama Saga - Edgar Franco e Mozart Couto
Quais temas gosta de abordar?

O tema maior é a busca da integralidade como ser, o que implica a coragem de sermos nós mesmos, essa integralização envolve o caminho para a transcendência e a iluminação. Obviamente tenho muito interesse pelos caminhos e descaminhos de nossa espécie humana e sobre suas relações com a biosfera e os processos hipertecnológicos e a chamada tecnognose, mas mesmo em minhas criações mais obtusas e obscuras estou sempre falando sobre a busca do amor incondicional e da compaixão ativa.

Sketchbook - Edgar Franco

 Quais suas principais referências? O que te inspira?

Obviamente além de artista transmídia também sou um admirador de arte, e isso envolve todas as formas de expressão, sou fascinado por pintura, escultura, literatura, arquitetura (inclusive sou graduado em arquitetura e urbanismo pela UnB), instalação, poesia, desenho, dança, gravura, cinema, vídeo, performance, teatro, música, todas as expressões artísticas têm sempre algo a dizer-nos em suas especificidades, tenho artistas prediletos em todas elas; mas sempre gosto de dizer que não me inspiro diretamente em nenhum artista ou estilo, inspiro-me em minhas experiências, são elas as geradoras de minhas criações, os aspectos imanentes e transcendentes da minha vida.

Tem gente que me acha workaholic, mas como eu disse, crio muito, estou sempre envolvido em inúmeros projetos por pura pulsão criativa e amor em criar, não considero isso trabalho, é sempre diversão.

Como é seu dia a dia de criador?

Tem gente que me acha workaholic, mas como eu disse, crio muito, estou sempre envolvido em inúmeros projetos por pura pulsão criativa e amor em criar, não considero isso trabalho, é sempre diversão. Não crio arte por encomenda, nunca criei, faço o que gosto, e apenas isso. A arte genuína para mim deve ser totalmente livre de qualquer amarra dogmática ou mercadológica, por isso sou um artista que vivo do meu hobby de professor e pesquisador, ele garante meu sustento para que minha arte seja completamente imaculada e livre de qualquer amarra de mercado. Normalmente grande parte de minhas criações é feita durante o dia, principalmente no período da manhã. Durmo cedo, por volta de 22:00 hs, e acordo cedo, 6:00hs. Tenho hábitos de vida saudáveis, sou vegetariano restrito (mais conhecido como vegano, mas abomino as conexões dogmáticas do termo) e pratico uma arte marcial.

Postbiological Aedes


Você faz alguma pesquisa para suas histórias?

Sim, certas HQs demandam pesquisas de anos, como o álbum BioCyberDrama Saga. E mesmo minhas HQs experimentais envolvem pesquisas prévias sobre o campo de investigação proposto. Além de artista sou um pesquisador e a pesquisa é parte inerente de minhas obras. Em certas obras criadas exclusivamente com a ação da intuição e da subjetividade, a pesquisa vem depois, como parte complementar, numa tentativa de organizar a forma pela qual a inspiração e a criação se desenrolaram.
O que faz quando tem o famoso “branco”?

Essa história de BRANCO é para quem TRABALHA (tripalium), se você tem que responder a uma demanda de alguém, ou do mercado, você tem brancos, pois isso envolve ansiedades, medos de falhar, de não agradar, um milhão de cobranças de todos os lados. Branco não é coisa de artistas genuínos, é um mal que aflige entertainers e trabalhadores de setores da comunicação e do entretenimento. Um artista só cria a partir da genuína pulsão artística, então como pode ter brancos? É impossível. Desde que sou artista eu nunca tive um branco, mas quando era bem novo e fiz algumas obras por demanda, senti na pele o asco de ter que submeter minha pulsão criativa ao desejo dos outros, espero nunca mais viver tal desagradável experiência. Eu escolho o que vou criar, quando e como vou criar. A arte para mim é um ritual de cura, de autocura, um processo mítico transcendente.

HQ Duetos Essencias

A sua obra explora os limites do quadro. Qual a importância do quadro em uma história em quadrinhos?

O quadro, ou requadro é só um dos múltiplos elementos/signos da linguagem multifacetada dos quadrinhos, que tem como grande forma sintática a conexão sinergética entre imagem e texto. O que caracteriza verdadeiramente uma HQ é a ação visual narrativa que pode estar em apenas um único requadro/desenho. Por isso o requadro é um elemento importante em certas narrativas gráficas e totalmente descartável em outras.  Obviamente, por questões de simplificação e sistematização, as telas da pintura foram feitas em formatos retangulares, e a indústria dos impressos copiou esse formato e o quadro tornou-se um padrão básico, já que até o papel que compramos pra desenhar vem em formatos retangulares (A2, A3, A4), mas mesmo esse padrão pode e deve ser rompido quando necessário.

O ato de virar a página, ou rolar a barra de rolagem modifica a percepção visual da sequência e todos bons quadrinhistas lançam mão desses recursos para criarem suas histórias.

Quais são os cuidados na hora de diagramar uma página? Existe diferença entre o que vai em uma página ímpar e uma par?

Uma das grandes unicidades da linguagem das HQs está na capacidade de imaginar a construção das páginas e do enquadramento (ou ausência dele) como forma de amplificar a força narrativa da obra. O ato de virar a página, ou rolar a barra de rolagem modifica a percepção visual da sequência e todos bons quadrinhistas lançam mão desses recursos para criarem suas histórias. Esses aspectos sempre foram muito importantes para mim.

Revista "Artlectos & Pós-humanos #11" (Editora Marca de Fantasia)

Como chegar até o público? Como estabelecer uma relação com o leitor?

Emociono-me com as respostas que obtenho de leitores e fruidores de minhas obras, alguns que acompanham minhas criações há mais de 25 anos, e agradeço-lhes imensamente pela gentileza e pelo carinho. Mas devo ser sincero na resposta e dizer que não crio arte pensando em público, crio arte como genuína pulsão criativa, crio pela necessidade visceral de criar, e isso não envolve a preocupação com a recepção, em saber se os leitores vão gostar ou não, repito que para mim a arte é um processo ritual introspectivo e fruitivo, e como criador assumo as HQs como uma legítima forma de arte e expressão artística. Estabelecer relações com um público na maioria das vezes envolve dar a esse público o que ele espera, entretê-lo. O entretenimento tornou-se uma forma profunda de alienação contemporânea, um vício contumaz das massas, a última coisa que desejo com minhas obras é alimentar tal vício. Minhas obras costumam sim é provocar e incomodar os que se dispõem a fruí-las. O ato criativo deve ter um sentido em si mesmo, e não deve ser amarrado a uma possível recepção que o legitimará ou não.

Nunca tivemos tanta gente criando quadrinhos no Brasil, e nunca tivemos tão poucos leitores.

Quais as dificuldades do mercado brasileiro?

Nunca tivemos tanta gente criando quadrinhos no Brasil, e nunca tivemos tão poucos leitores. Não existe um investimento na criação de novos leitores, pouquíssimo quadrinho infantil é feito no Brasil e o que é feito esbarra no monopólio cruel e embargador do estúdio que domina o setor no país. O resultado disso são eventos de quadrinhos no país inteiro com autores trocando seus álbuns e revistas com outros autores e vendendo muito pouco para leitores e novos leitores fora do circuito das HQs. Os quadrinhos estão no caminho de tornarem-se uma mídia cult como aconteceu com o teatro, serão lidos por poucos e terão pequenas tiragens, ao menos essa é a perspectiva minha para todo o mundo ocidental.

Quais as dificuldades de distribuição?

Além dos velhos monopólios de distribuidoras, os pequenos editores esbarram com o cartelismo de certos editores. O correio e as logísticas no Brasil são caros e dos piores do mundo, o que dificulta as vendas pela internet. A única vantagem é que diante de um mercado instável e complexo temos a impressão por demanda que começou a ser adotada até por editoras de médio porte, fazendo tiragens iniciais de 100 ou 200 exemplares. 

Fanzines da "Aurora Pós-humana" de Edgar Franco e Danielle Barros.
O que te motiva a continuar fazendo quadrinhos?

As experiências de vida e o puro prazer de criar!

Lembre-se que um bom artista nasce da assiduidade do ato criativo, portanto crie muito, da quantidade surge a qualidade. Não tenha medo de errar na hora de criar, erre, erre muito, pois é dos erros que vão aparecer os acertos!

O que aconselharia para quem está começando ou quer criar quadrinhos?

Primeiramente, e o mais importante de tudo, no contexto do mundo  hiperinformacional em que vivemos, é você se auto conhecer. Investigar no interior de si mesmo aquilo de que você realmente gosta. E não importa o que você gosta, qual gênero, estilo de traço ou escola das HQs! Você pode dizer-me: eu gosto de mangá, eu quero desenhar mangá, quero aprender, me aprofundar. Ótimo, seja sincero consigo mesmo, eleja verdadeiramente aquilo que te apaixona como forma de expressão e mergulhe profundamente nesse universo criativo. Lembre-se que um bom artista nasce da assiduidade do ato criativo, portanto crie muito, da quantidade surge a qualidade. Não tenha medo de errar na hora de criar, erre, erre muito, pois é dos erros que vão aparecer os acertos! Eu vejo sempre jovens criadores querendo começar a primeira história em quadrinhos e acertar, já criar uma obra prima, e ter sucesso e fama com ela.  Isso não vai acontecer, não espere resultados, crie pelo prazer e pulsão de criar. Outra dica importante, não fique bitolado só no universo da arte que você quer desenvolver, porque você vai tornar-se um reprodutor daquilo que já foi feito por outros. Todo artista tem que experienciar continuamente todas as formas de expressão: vá ao teatro, vá muito ao cinema, e não só ao cinema mainstream comercial, encare o cinema de artista, autoral, aquele que você está achando meio chato, encare, pois ali você aprenderá sutilezas sobre a linguagem narrativa. Não leia só o mangá que você gosta, mesmo que você vá fazer mangá, leia todas as formas de quadrinhos que existem, e leia livros, busque os grandes clássicos da literatura mundial e nacional e leia-os. Envolva-se em todas as formas de arte, e também procure experimentar criar em outros suportes e para outras formas de expressão. Se você quer criar quadrinhos,  para ser genuíno é necessário cultivar uma visão ampla de cultura, assim você vai criando novas conexões neuronais, e evitará produzir obras derivativas. Eis os pontos fundamentais: criar muito e disciplinadamente, tornar o ato criativo algo de seu cotidiano; ter a cabeça aberta para experimentar todas as artes como fruidor e criador; estudar bastante; e finalmente, não ouvir as críticas, a não ser de quem te ama de verdade. Importante destacar que essas são dicas para forjar um artista genuíno dos quadrinhos, e não um trabalhador submetido ao mercado ou coisas do gênero.

Agradeço ao Quadrinhólatra pela incrível oportunidade se expressar-me através dessa entrevista e convido aos interessados em saberem mais sobre minhas obras como quadrinhista e artista transmídia a visitarem o meu blog “A Arte do Ciberpajé Edgar Franco”

 

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