Por CARLOS GUILHERME VOGEL
O Brasil parou na noite de 04 de outubro de 1972. A telenovela Selva de Pedra, da TV Globo, atingia a marca de 100% de audiência, no capítulo de número 152, exibido naquela noite. O episódio, que apresentava um ponto de virada importante na trama, pode ser analisado como um símbolo nacional acerca do encantamento do espectador frente a uma boa história.
Quase 41 anos depois, no dia 29 de setembro de 2013, os fãs brasileiros da série americana Breaking Bad aguardavam ansiosamente que o último episódio fosse disponibilizado para download por algum site pirata, após ter ido ao ar pelo canal estadunidense AMC. A série, que foi fenômeno de audiência na televisão a cabo dos EUA, teve seu final assistido por 10,3 milhões de espectadores naquele país. Ao redor do mundo, estima-se que nas 12 horas seguintes já haviam sido feitos mais de 500 mil downloads do episódio, todos em sites não oficiais.
A narrativa em capítulos ou episódios é antiga. A televisão se apropriou deste estilo de contar histórias, que surgiu na França no início do século XIX, e tanto a telenovela brasileira quanto os seriados estadunidenses são seus derivados. Entrar em contato com histórias que são contadas em pequenos pedaços sempre encantou as pessoas e o estilo foi sendo explorado de formas distintas e em diferentes meios.
Ao se falar em televisão, e citar os exemplos de Selva de Pedra e Breaking Bad, embora se tratando de produtos televisivos distintos, exibidos em países e épocas diferentes, o que se depreende a partir deles é a transformação histórica que se deu na relação do espectador com a televisão e, consequentemente, com o folhetim.
Dos canais abertos à chamada TV on demand (serviço pago, onde se pode escolher o que assistir a partir de um menu de opções), um longo caminho foi percorrido, proporcionando mudanças na relação do público com o veículo. Hoje não é mais o público que se adapta aos horários de exibição da programação televisiva, e sim programação que vai em busca do seu público.
A guerra pela audiência se acirrou muito, e vão longe os tempos em que uma novela das oito era unanimidade no país inteiro. A televisão precisou reinventar seus produtos, apresentar novas opções e remodelar antigos formatos. Além disso, torna-se cada vez mais evidente o diálogo com as tecnologias digitais, como a Internet, e a utilização de elementos comuns a outras mídias, sendo a principal delas o cinema.
Neste caminho percorrido, acredito que a telenovela se mantém muito mais fiel a sua origem folhetinesca e ao tipo de histórias que são contadas, enquanto as séries vem caminhando cada vez mais na direção dos diferentes gêneros cinematográficos.
A televisão evoluiu através dos tempos e com isso, evoluiu também o comportamento do espectador. A forma como se assiste à televisão no Brasil, hoje, é muito distinta da forma como se assistia nos anos 70. As telenovelas, apesar de ainda serem o carro chefe da programação da principal emissora do país, não são mais o fenômeno de audiência que foram no passado. Ao longo dos anos, outros tipos de narrativas ganharam espaço.
O destaque vai para uma nova forma de entretenimento, surgida no final dos anos 90 nos EUA, que tem conseguido sucesso de público e crítica ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Conhecida no meio audiovisual como a terceira era de ouro da televisão norte-americana e no meio acadêmico como narrativas complexas, este novo formato vem ganhando e explorando novos espaços.
Para o pesquisador Jason Mittel essa nova forma de produto televisivo “se diferencia por usar a complexidade narrativa como uma alternativa às formas episódicas e seriadas”. Séries precursoras na utilização de uma nova linguagem, como The Sopranos (1999-2007) e Six Feet Under (2001-2005), apostaram alto na experimentação e ganharam o público.
Para Brett Martin, autor do livro “Homens Difíceis”, se os criadores e roteiristas de séries precursoras deste novo formato fossem dar ouvidos a opiniões convencionais da época, jamais teriam levado ao lar dos americanos personagens infelizes, moralmente incorretos e complexos, mas ao mesmo tempo profundamente humanos. Segundo o autor, porém, “desde o momento em que Tony Soprano entrou em sua piscina para dar as boas-vindas a seu bando de patos geniosos, ficou claro que os espectadores estavam dispostos a ser seduzidos”.
Além da TV a cabo, a evolução tecnológica tem possibilitado o surgimento novos mecanismos para atrair a atenção do espectador. Com o advento de plataformas de transmissão via streaming (uma tecnologia que envia informações multimídia, através da transferência de dados), a tela do aparelho televisor passou a dividir um espaço ainda maior com a tela do computador e também com tablets e smartphones.
Criada em 1997, tendo como atividade a entrega de DVDs pelo correio, após 20 anos a Netflix se transformou num provedor global de filmes e séries de TV via streaming. Conforme dados de 2015, naquele ano a plataforma já possuía 62 milhões de usuários ao redor do mundo e 70% do conteúdo assistido corresponde a séries. Por conta de serviços como esse, canais de TV a cabo como a HBO também criaram seu próprio aplicativo de streaming, como o HBO Now, disponibilizando seus programas aos usuários, mediante o pagamento de uma mensalidade, nos mesmos moldes do Netflix.
Todos esses fatores colaboraram de alguma forma para que a relação entre a televisão e seus espectadores se transformasse e partisse para um novo lugar, onde os espectadores se tornam mais exigentes e o veículo precisa oferecer a eles novas possibilidades. Dentre estas novas possibilidades, estariam o que alguns estudiosos chamam de narrativas complexas, um novo formato na narrativa ficcional televisiva.
Mittel afirma que rotular produtos televisivos como convencionais ou complexos carrega julgamento de valor, “da mesma forma que termos como primitivo e clássico assinalam pontos de vista analíticos nos estudos fílmicos”. Porém, o autor justifica a importância de estudos acerca deste modelo de narrativa, pois, para ele, o modelo das chamadas narrativas complexas “oferece uma gama de oportunidades criativas e uma perspectiva de retorno do público que são únicas no meio televisivo. Ela deve ser estudada e entendida como um passo chave na história das formas narrativas televisivas”.
É preciso deixar claro, porém, que não se pretende afirmar que a televisão esteja deixando de ser televisão à medida que dialoga com outras mídias e utiliza elementos destas. De acordo com roteirista brasileiro Newton Cannito, “a linguagem dominante na TV digital, capaz de conquistar o público, não transformará a televisão em cinema, nem transformará a televisão em internet; será a linguagem que potencializará digitalmente os procedimentos que a televisão já faz de forma analógica”.
A televisão, porém, se alimenta de outras fontes e se transforma, desenvolvendo suas possibilidades, em busca da atenção de um espectador cada vez mais exigente, cada vez mais bombardeado por informações e, acima de tudo, disputado como nunca pelas mais diferentes mídias.
Já vai longe o tempo em que 100% dos telespectadores brasileiros ligavam seus aparelhos de televisão na novela das oito, para assistir aos dramas de Cristiano Vilhena e Simone Marques, em Selva de Pedra.
A televisão brasileira e a mundial se reinventam. Televisão, cinema e internet se interrelacionam e transformam essas relações entre si e também com os espectadores que, acredito, são os que mais tem a ganhar isso.
Fontes consultadas:
CANNITO, Newton. A TV 1.5. A Televisão na Era Digital. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. 293 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
IMDB. Breaking Bad. Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0903747/
IMDB. Selva de Pedra. Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0208635/
LIMA, Cecília A.; MOREIRA, Diego G. e CALAZANS, Janaína C. Netflix e a manutenção de gêneros televisivos fora do fluxo. Matrizes, São Paulo, USP, ano 8, n.2, Jul./Dez., 2015.
MARTIN, Brett. Homens Difíceis. Os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. São Paulo: Aleph, 2014.
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MITTEL, Jason. Complexidade Narrativa na Televisão Americana Contemporânea. Matrizes, São Paulo, USP, ano 5, n.2, Jan./Jun., 2012.
SUPER INTERESSANTE. Por dentro da Netflix. Disponível em http://super.abril.com.br/cultura/por-dentro-da-netflix
TELEDRAMATURGIA. Selva de Pedra (1972). Disponível em http://www.teledramaturgia.com.br/selva-de-pedra-1972/
UOL. Em 1972, Selva de Pedra foi vista em 100% das TVs, mas recebeu críticas. Disponível em http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/em-1972-selva-de-pedra-foi-vista-em-100-das-tvs-mas-recebeu-criticas-6782
UOL. Episódio final de "Breaking Bad" tem 500 mil downloads ilegais em 12 horas. Disponível em http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2013/09/30/episodio-final-de-breaking -bad-tem-500-mil-downloads-ilegais-em-12-horas.htm
CARLOS GUILHERME VOGEL
Roteirista, Produtor e Diretor.
Mestrando em Comunicação no PPGCOM/UERJ, na linha "Tecnologias de Comunicação e Cultura".
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