Raphael Fernandes (Foto por Rafael Roncato)   Trabalhar com cultura nunca foi tarefa fácil. O artista começa enfrentando as próprias ...

10:38:00 by marcelo engster
Raphael Fernandes (Foto por Rafael Roncato)
 
Trabalhar com cultura nunca foi tarefa fácil. O artista começa enfrentando as próprias dúvidas. O que pretendo contar é realmente interessante? Diz algo? Alguém teria algum interesse sincero no que quero dizer? E como dizer? Por onde começar? Como prosseguir? Esse é o caminho certo?
Seguem aí as dificuldades de realização. Dificilmente uma obra de arte se faz sozinha. A cultura pede, exige trabalho coletivo. Um cineasta precisa de uma gama de outros artistas para levar um filme à tela. Um roteirista de quadrinhos precisa de um desenhista para passar sua história ao papel. E os dois precisam de um editor pra tornar a HQ em algo real.
Filme pronto, gibi impresso. E agora? Como chego ao público? Como converso com ele? Onde distribuo minha obra?
Pretendendo ajudar a responder essas e outras perguntas, nós do Quadrinhólatra realizaremos entrevistas com abnegados e corajosos artistas falando sobre seus processos criativos. E começamos logo com um cara que entende tanto do processo de criação de quadrinhos como de sua publicação, o roteirista, editor e um dos grandes incentivadores de novos artistas nacionais, Raphael Fernandes.

Qual sua história com os quadrinhos? Como você começou a trabalhar com banda desenhada?
Sou leitor de quadrinhos desde criança. Porém, me tornei um verdadeiro fanático no período da faculdade quando comecei a acompanhar tudo o que saia e vivia enfiado em sebos. Foi nessa época que comecei a frequentar os cursos de graduação sobre a linguagem na ECA/USP. Em uma das aulas do Waldomiro Vergueiro, o editor Fernando Lopes ofereceu uma vaga para trabalhar no editorial da Panini/Mythos e acabou que fui selecionado. Apesar de ser escolhido, eu não sabia fazer absolutamente nada e aprendi tudo ali na redação. O grande ponto de virada foi quando eu assumi algumas edições da MAD Especial pela Mythos e depois me tornei editor da MAD mensal pela Panini. A partir daí, eu percebi que tinha um perfil editorial mais criativo e também retomei meus planos de ser escritor e roteirista. Fiz dezenas de cursos, produzi alguns quadrinhos independentes (Ida e Volta, Ditadura No Ar, Gibi Quântico), que ganharam prêmios e muitos leitores. Hoje, sou sócio da Editora Draco, onde edito novos projetos de quadrinhos e publico minhas HQs.

Meu processo criativo é bem caótico. Costumo me enfiar em obras de meu interesse, normalmente livros de filosofia, autores malditos, cinema underground, quadrinhos esquisitos, peças de teatro subversivas, conversas em botecos... em todas essas maravilhosas fontes de pesquisa e vivência.

Como é seu processo criativo? Você tem uma rotina de criação? Tem metas? Como fazer pra chegar da ideia ao papel?
Meu processo criativo é bem caótico. Costumo me enfiar em obras de meu interesse, normalmente livros de filosofia, autores malditos, cinema underground, quadrinhos esquisitos, peças de teatro subversivas, conversas em botecos... em todas essas maravilhosas fontes de pesquisa e vivência. Dessas experiências nascem alguns insights, que registro e já pré-organizo dentro de algum campo de ideias. Conforme vão aparecendo oportunidades de produção, eu retomo alguma dessas ideias ou produzo uma nova com base nessa bagagem cultural.  Porém, meu lado editor costuma formatar a ideia para um público alvo e também para um formato que seja comercial.
Não costumo ter metas. Vejo muita gente falando de número mínimo de palavras por dia e acho isso um pouco forçado. Escrevo bastante e o tempo todo, mas não preciso de metas para isso, a vontade de produzir é o verdadeiro talento. 



Quais temas gosta de abordar?
Me interesso bastante por cultura urbana em seus mais diversos sentidos, tentativas de enfrentar o sistema através da arte e da rebeldia, os aspectos mais macabros do homem e seu medo do desconhecido e também a complexidade absurda que existe em cada um de nós.

Porém, a minha maior inspiração é sempre conviver com outras pessoas e sentir um ódio imenso do sistema e das figuras de autoridade.

Quais suas principais referências? O que te inspira?
Sou formado em História e sempre me interessei por tudo que é subversivo, maldito, obscuro, herege, antinatural, rebelde e como esses aspectos podem revelar o lado mais humano das pessoas. Sou apaixonado por diversas formas de expressão como a literatura, cinema, teatro, artes plásticas, quadrinhos, RPG, música e tal. Dentro desse universo, alguns nomes sempre vão me inspirar: Alan Moore, H. P. Lovecraft, Augusto dos Anjos, Aleister Crowley, Marcos Rey, Robert Crumb, Frank Miller e muitos outros.  Porém, a minha maior inspiração é sempre conviver com outras pessoas e sentir um ódio imenso do sistema e das figuras de autoridade.

No momento, eu estou aprendendo bastante sobre como escrever personagens femininos realistas e sem um ponto de vista machista. É bem difícil, mas está sendo muito gratificante.

Você faz alguma pesquisa para suas histórias?
Sempre que necessário, eu faço pesquisas para tirar dúvidas sobre algumas coisas, para encontrar soluções e também para desenvolver melhor certos tipos de personagem. No momento, eu estou aprendendo bastante sobre como escrever personagens femininos realistas e sem um ponto de vista machista. É bem difícil, mas está sendo muito gratificante.

                                                                           Apagão

O que faz quando tem o famoso branco?
Normalmente, esse branco envolve a necessidade de buscar novas referências, mas costuma acontecer comigo quando estou trabalhando em algo que não é meu. Se não consigo perceber a real intenção de um projeto, tenho dificuldade de produzir algo pra ele. Por outro lado, raramente, eu sinto isso. Normalmente, eu evito me envolver nesse tipo de situação. Pratico alguns exercícios criativos que me ajudam nisso, mas quando o burro empaca é sinal de que estou indo por um caminho que não me agrada.

A santíssima trindade de uma boa narrativa é trabalhar para que cenário e trama sejam ótimos palcos para que seus personagens se desenvolvam naturalmente.

Qual a importância das personagens para as histórias? Qual seu trabalho de desenvolvimento de personagens?
Acredito que eles são o centro de qualquer boa história. A santíssima trindade de uma boa narrativa é trabalhar para que cenário e trama sejam ótimos palcos para que seus personagens se desenvolvam naturalmente. Costumo me basear em amigos, atores, perfis de gente que me incomodam de alguma maneira e também usando o Tarot como fonte de inspiração.
Para que um personagem ganhe vida, precisamos acreditar na existência dele e em seu modo de ser a ponto dele ter atitudes e pensamentos independentes de seu autor. Criar personagens é como dar vida a ideias e depois trabalhar para expor tudo o que elas são.

Costumo perceber que meus trabalhos com maior apelo são aqueles em que me permito expor mais meus sentimentos.

Como chegar até o público? Como estabelecer uma relação com o leitor?

Do ponto de vista da escrita, eu acredito que quanto mais verdadeiros, simples e diretos formos mais o leitor vai se identificar com o seu texto. Costumo perceber que meus trabalhos com maior apelo são aqueles em que me permito expor mais meus sentimentos.
Mas, se estamos falando de chegar ao público, eu acredito que ainda precisamos de muito apoio da mídia tradicional (televisão, rádio, grandes portais, jornais), que anda pouco preocupada com a cultura. E também de um esforço dos grandes canais de cultura pop, como o Omelete e Jovem Nerd, para que os autores brasileiros sejam mais conhecidos do público que gosta do que produzimos.

Apagão

Como é a relação entre o roteirista e o desenhista?

Depende de cada indivíduo. Alguns desenhistas como o Camaleão, Rafael Vasconcellos e Victor Freundt, eu considero como pessoas da minha família. Tenho um amor puro e verdadeiro por eles. Para outros, o trabalho é a única ligação que temos e tudo é tratado com extrema frieza. Também há alguns conflitos que acabam terminando com aquele sabor de paixões desfeitas e inimizades adquiridas. Sinceramente, é como qualquer relação humana... extremamente complexo.

Eu não pago todas as contas com quadrinhos, mas não consigo viver sem eles.

Você consegue viver de quadrinhos?
Essa é uma pergunta que me fazem todos os dias. A resposta sincera? Eu não pago todas as contas com quadrinhos, mas não consigo viver sem eles. Porém, essa é uma escolha de vida muito pessoal. A real é que eu não comecei minha história querendo ser autor de quadrinhos, meu objetivo sempre foi ser escritor. Se pensar por este lado, eu trabalho como escritor e redator em tempo integral e sou muito feliz com isso. 



Qual o papel de um editor de quadrinhos em uma obra?
Sou suspeito para falar, mas na minha visão o editor é uma figura central da produção de uma história em quadrinhos. Normalmente, ele assume os papéis de bastidores de um projeto e toma decisões que ninguém mais terá estômago para tomar. A responsabilidade de um editor é enorme e o resultado depende demais de sua visão de mundo e capacidade de perceber o mundo em que vivemos. Muitos projetos acabam chegando prontos na mão de um editor, mas o verdadeiro homem deste ofício gosta de criar projetos, encontrar parcerias, lançar desafios pros seus autores e, acima de tudo, buscar construir a melhor obra possível com os recursos que tem.
Todos os dias, eu me sinto uma mistura de Roger Corman com Ed Wood, mas com todo o tempero brasileiro de um José Mojica Marins. Como se fosse um médium que faz a ligação entre os autores e seus leitores.

Ditadura No Ar

Quais as dificuldades para publicar digital e físico? Quais são os cuidados que se deve tomar em cada um desses formatos? Quais são as dificuldades na distribuição?

Essa pergunta merece uma resposta gigantesca, mas vou tentar ser direto.
 A publicação digital oferece poucas dificuldades para ser realizada, mas enfrenta uma gigantesca concorrência pela atenção de seus leitores. Afinal, tudo está ali para roubar seu leitor: redes sociais, vídeos, memes e outros autores. Também é um meio em que alguma atitude errada, falta de bom senso ou ofensa podem alcançar efeitos realmente desastrosos e perder o controle.  
Para a produção impressa, a dificuldade sempre será o custo, tanto para imprimir como para armazenar os produtos. Dentro desse custo, eu incluo a distribuição que só favorece as grandes empresas e ainda é muito caótica. As livrarias são complicadas e estão sempre mudando suas regras, as bancas oferecem um risco muito grande e as comic shops alcançam apenas um nicho pequeno de pessoas. A produção impressa exige também diversas habilidades e muita experiência em lidar com fechamento de arquivos. 
Nessas horas, eu agradeço bastante ao meu sócio Erick Sama, que é um excelente designer gráfico e manja de tudo quando o assunto é publicar, tanto no impresso como no digital. A melhor pessoa para responder sobre tudo isso seria ele, que está 24 horas envolvido em tudo isso e faz milagres com os recursos que temos a nossa disposição.

Os roteiristas ainda sofrem muitos preconceitos dos colegas e demoram um pouco mais para ganhar reconhecimento de público e crítica.

Existe diferenças de mercado de trabalho para roteiristas e desenhistas?

Não há dúvidas, afinal, os desenhistas podem trabalhar com maior facilidade como mão de obra para outros países. Enquanto, os roteiristas sempre vão enfrentar a barreira da língua. Sem falar que quando alguém vê um quadrinho, a primeira coisa que a pessoa vê é o desenho e só depois vai se atentar ao conteúdo. Porém, uma ideia muito boa pode transparecer além da arte. Só de resumir o conteúdo daquela HQ, o leitor já se sente instigado. Os roteiristas ainda sofrem muitos preconceitos dos colegas e demoram um pouco mais para ganhar reconhecimento de público e crítica.
No entanto, acredito que isso vem mudando bastante com a construção do nosso mercado que está exigindo histórias mais bem contadas. Porém, isso também vai de cada profissional. Existem roteiristas e desenhistas preparados ou não.

Seja um culturonauta e explore os caminhos do conhecimento humano. Quando voltar para a Terra, conte-nos sobre o que viu em suas viagens. Com o tempo, você será um dos melhores contadores de histórias que existe.

O que aconselharia para quem está começando ou quer trabalhar com quadrinhos?

As histórias em quadrinhos são uma linguagem e a melhor maneira de trabalhar com uma linguagem é se tornando fluente nela. Para isso, o indivíduo precisa ter experiências práticas usando e percebendo aquela linguagem. 
Por isso, se você quer fazer quadrinhos estude bastante sobre o assunto e coloque suas ideias em prática. Mesmo que apenas para você, não fique apenas na vontade, mas dê sua cara a tapa. Somente com a produção, você será capaz de construir sua fluência nos quadrinhos. Outra coisa importante, para fazer quadrinhos você precisa entender de muitos outros assuntos que não são quadrinhos e cultura pop, se aventure a sair desse mundo e sempre terá algo de novo para trazer para ele.
Seja um culturonauta e explore os caminhos do conhecimento humano. Quando voltar para a Terra, conte-nos sobre o que viu em suas viagens. Com o tempo, você será um dos melhores contadores de histórias que existe.



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