SINOPSE: Sem amigos, Anna é uma garota muito solitária que vive com seus pais adotivos. Um pouco doente ela é obrigada a se retirar para uma cidade do interior, onde acaba se tornando amiga de Marnie. A amizade das duas floresce cheia de cumplicidade, até que segredos muito antigos e profundos mudam as duas meninas para sempre.
Esse é o segundo filme do diretor Hiromasa Yonebayashi que antes havia dirigido o longa “O Mundo dos Pequeninos”, de 2010. Hiromasa também assina o roteiro. Há uma sutil diferença entre os dois filmes quando pensamos no trabalho de direção e roteiro. Nota-se mais profundidade ao explorar o desenvolvimento da história, coisa que no primeiro, apesar de ter o roteiro assinado pelo reverenciado Hayao Miyazaki, não é evidente.
Mas vamos as impressões desse segundo filme de Hiromasa...
Sabe aquela sensação de não pertencimento. De não estar ou conseguir se conectar com algo, seja lá o que esse algo for... estar perdido e ao mesmo tempo não estar em busca. Um fantasma vagando em si mesmo. Assim começa esse desenho notável dos Estúdios Ghibli. Um passeio por memórias turvas, incertezas, amor incondicional, fantasmas e paz de espírito. Onde tudo é desvelado sem pressa, devagar.
Nos é apresentado Anna, uma garota introspectiva tal como a introdução da trama do filme. Adotada, frustrada e solitária ela vive em um mundo que cria para si própria, cheio de silêncio e isolamento. Onde movida por uma curiosidade errática vaga por um mosaico de memórias tão frágeis quanto as certezas que acreditamos. É uma personagem muito complexa. É preciso mais que os dez minutos iniciais que ditam algumas regras de roteiro para ser envolvido completamente no seu mundo e na forma como ela se coloca no nosso. Há um estranhamento inicial pois ela parece ser um personagem inconsistente. Cada vez que ela externa algo experimentamos um pouco do turbilhão de angústias dentro dela. É estranho porque alguns manuais de roteiro salientam que um filme não deve se passar na cabeça da personagem. Um filme é ação, contemplação é para fotografia. E entretanto Anna é uma personagem que ousa parar na nossa frente e pensar, contemplando o vazio e um mar de dúvidas.
Se é difícil saber quem é Anna, Marnie se torna uma tarefa quase inconclusiva, mas é ela que externa tudo o que precisamos saber de Anna. Se por um lado temos uma personagem projetada para dentro de si, com Marnie temos um energia expoente de alegria criativa e vida. Ela surge e modifica o tom do filme. Preenche-o de cor e sorrisos. Ela faz Anna feliz. Ela está feliz. Ela nos deixa feliz.
Uma casa isolada no meio de um pântano reforça uma ideia de que todos nós somos uma ilha, onde só o barco certo ousa se aproximar.
Os temas giram em torno da violência física e psicológica que algumas crianças sofrem. Ainda que justificado no filme por uma série de perdas, erros e rumos trágicos que compõem alguns dos personagens adultos. Negligência, crueldade e abandono são devidamente abordados. O desenho em alguns momentos centraliza esses temas e exige uma reflexão profunda sobre isso. Em contra ponto há a cumplicidade, o zelo e um amor incondicional que chega a ser sólido. Além do filme nos compelir a passarmos horas abraçados em alguém transbordando todo afeto que não nos cabe. Há uma certa impotência em presenciarmos coisas tão duras, uma passividade incômoda e vergonhosa enquanto a vida daqueles personagens sussurra: “zele pelas suas crianças, pois amor se constrói”. Não é uma obra grandiosa do estúdio Ghibli, mas também está longe de ter alguma superficialidade.
Há signos bem interessantes. Há uma gama de sutilidades que compõem o filme. Cada um atribui a esses elementos um significado que pode não ser o mesmo de pessoa a pessoa. Uma casa isolada no meio de um pântano reforça uma ideia de que todos nós somos uma ilha, onde só o barco certo ousa se aproximar. Um dos detalhes mais importante é que majoritariamente as personagens do filme são mulheres. Os homens estão lá e em algum momento quando a principal figura masculina aparece, podendo reforçar o estereótipo da figura paternalista, ele surge para dar apoio para uma mulher fragilizada. Só isso. E isso tudo.
Não é necessariamente um desenho para crianças, ao menos as ocidentais. É um desenho sobre crianças. Sobre desprender de si o afeto a elas, modelarmo-nos no ato da criação e lhes dar a devida atenção para uma vida que as vezes espera mais do que pode dar. Pensando alguns dos títulos do Estúdio acho que podemos ver que a preocupação com a criação da criança e a constituição do seu universo está sempre muito presente, mas creio que As Memórias de Marnie foi muito bem sucedido nesse aspecto.
É um filme sutil e impactante. Creio que quem trabalha com crianças, tem filhas (os) ou pretende tê-las (los) se sensibilizará com essa obra, talvez, com um grau mais elevado de suscetibilidade. Mas é um desenho para ser assistido por toda a família. É um filme para abrir debates. Não é feminista, mas um filme de muita feminilidade. Força e comprometimento. Uma obra para reflexões... sobre dar amor e criarmos nossas crianças.
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